Os marinheiros, em festa, entregam os navios. O uso da chibata
como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil finalmente está
extinto.
Logo, no entanto, o governo trai a anistia. Os marinheiros
começam a ser perseguidos. Surgem notícias de uma nova revolta, desta vez no
quartel da Ilha das Cobras. O governo recebe plenos poderes do Congresso para
agir. A ilha é cercada e bombardeada.
Cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do
navio "Satélite" - misturados a ladrões, prostitutas e desocupados recolhidos
pela polícia para "limpar" a capital - para trabalhos forçados na Comissão
Rondon, ou simplesmente para serem abandonados na Floresta Amazônica. Na lista
de seus nomes, entregue ao comandante do "Satélite", alguns estão marcados por
uma cruz vermelha. São os que morrerão fuzilados e, depois, serão jogados ao
mar.
João Cândido é conduzido para a prisão ("Agência
Estado")
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João Cândido, embora não tenha participado do novo levante,
também é preso e enviado para a prisão subterrânea da Ilha das Cobras, na noite
de Natal de 1910, com mais 17 companheiros. Os 18 presos foram jogados em uma
cela recém-lavada com água e cal. A cela ficava em um túnel subterrâneo, do qual
era separada por um portão de ferro. Fechava-a ainda grossa porta de madeira,
dotada de minúsculo respiradouro. O comandante do Batalhão Naval,
capitão-de-fragata Marques da Rocha, por razões que ninguém sabe ao certo, levou
consigo as chaves da cela e foi passar a noite de Natal no Clube Naval, embora
residisse na ilha.
A falta de ventilação, a poeira da cal, o calor, a sede
começaram a sufocar os presos, cujos gritos chamaram a atenção da guarda na
madrugada de Natal. Por falta das chaves, o carcereiro não podia entrar na cela.
Marques da Rocha só chegou à ilha às oito horas da manhã. Ao serem abertos os
dois portões da solitária, só dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado
naval João Avelino. O Natal dos demais fora paixão e morte.
O médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa da morte
como sendo "insolação". Marques da Rocha foi absolvido em Conselho de Guerra,
promovido a capitão-de mar-e-guerra e recebido em jantar pelo presidente da
República.
João Cândido continuou na prisão, às voltas com os fantasmas da
noite de terror. O jornalista Edmar Morel (1979, p. 182) registrou assim seu
depoimento pessoal: "Depois da retirada dos cadáveres, comecei a ouvir gemidos
dos meus companheiros mortos, quando não via os infelizes, em agonia, gritando
desesperadamente, rolando pelo chão de barro úmido e envoltos em verdadeiras
nuvens da cal. A cena dantesca jamais saiu dos meus olhos.
Atormentado pela lembrança dos companheiros mortos, João
Cândido é algum tempo depois internado em um hospício.
Perto do mar, as "pedras pisadas do cais"
Aos poucos, ele se restabelece. É solto e expulso da Marinha.
Os navios mercantes não o aceitam: nenhum comandante quer por perto um
ex-presidiário, agitador, negro, pobre e talvez doido. João Cândido continuará
contudo perto do mar, até morrer, em 1969, aos 89 anos de idade, como simples
vendedor de peixe.
Os que fizeram a Revolta da Chibata morreram ou foram presos,
desmoralizados e destruídos. Seu líder terminou sem patente militar, sem
aposentadoria e semi-ignorado pela História oficial. No entanto, o belíssimo samba "O Mestre-Sala dos Mares",
de João Bosco e Aldir Blanc, composto nos anos 70, imortalizou João Cândido e a
Revolta da Chibata. Como diz a música, seu monumento estará para sempre "nas
pedras pisadas do cais". A mensagem de coragem e liberdade do "Almirante Negro"
e seus companheiros resiste.
HOMENAGEM DE JOÃO BOSCO E ALDIR BLANC À "REVOLTA DA
CHIBATA"
Sobre a censura à música, o compositor Aldir Blanc conta:
"Tivemos diversos problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que a
Marinha não toleraria loas e um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou
oficiais, etc. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos,
tentando não mutilar o que considerávamos as idéias principais da letra. Minha
última ida ao Departamento de Censura, então funcionando no Palácio do Catete,
me marcou profundamente. Um sujeito, bancando o durão, (...) mãos na cintura, eu
sentado numa cadeira e ele de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três
centímetros do meu nariz. Aí, um outro, bancando o "bonzinho", disse mais ou
menos o seguinte:
- Vocês não então entendendo... Estão trocando as palavras como revolta,
sangue, etc. e não é aí que a coisa tá pegando...
- Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E,
como se tivesse levado um "telefone" nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta,
em voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:
- O problema é essa história de negro, negro, negro..."
MÚSICA DE JOÃO BOSCO E ALDIR BLANCI
EM HOMENAGEM A REVOLTA DA CHIBATA
Mestre-Sala dos Mares", de João Bosco e Aldir Blanc, composto
nos anos 70, imortalizou João Cândido e a Revolta da Chibata. Como diz a música,
seu monumento estará para sempre "nas pedras pisadas do cais". A mensagem de
coragem e liberdade do "Almirante Negro" e seus companheiros resiste.
O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)
(letra original sem censura)
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de
fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo
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O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)
(letra após censura durante ditadura militar)
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo
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