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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Matéria sobre Garrincha do jornal O Globo de 20 de janeiro de 2013. O que chama a atenção é a camiseta do Bloco Parókia em um dos entrevistados.


Cadê você, Mané?

  • Trinta anos depois da morte de Garrincha, a força da sua lenda ainda dribla e prega peças em Pau Grande
  • Poder público manda limpar mausoléu, mas seus restos estão noutro jazigo
MAGÉ - Em meio à floresta exuberante e à devastação material, uma visita a Pau Grande repete a trajetória dos dribles de Garrincha. Por mais que se saiba para que lado sua vida foi conduzida, o gênio sempre escapa para o campo da mitologia. Diante da escassez de imagens e patrimônio depois de 30 anos da sua morte, a preservação se dá pela oralidade. De pai para 12 filhos e 20 netos, restam fragmentos que jamais formam o quadro idealizado de uma família ainda à espera de reparação. Despido das convenções sociais, o craque preferia viver no mato, caçar passarinhos e flechar corações. Ainda na infância, as onças não o intimidavam, assim como as cobras e as assombrações. Apelidado com o nome de um pássaro, Garrincha é a própria lenda que vive para sempre na raiz da serra fluminense.
- Quando o corpo chegou, a igreja estava tão cheia que ninguém entrava. Vi a cabeça dele enfaixada e os olhos butucados, com aquela roxidão. Cirrose, que nada! Foi pancada - diz Malvino Freires, 80 anos, ao reforçar as marcas de fantasia de uma amizade conservada em álcool ao lado dos falecidos Pincel e Suingue.
Badaladas de emoção
Responsável pelo dobrar dos sinos da igreja, Malvino vive num pêndulo entre a fé e a incerteza. O lugar mais perto do céu que já conseguiu atingir fica encravado nas montanhas onde testemunhou os altos e baixos do craque nascido no dia 28 de outubro de 1933. Onze meses meses mais velho, Malvino trocou o quarto pago pela igreja por acolhida na casa de vizinhos, numa ladeira inacessível para automóveis. Recluso, só desce para dar as badaladas que anunciam a alvorada e a missa dominical. Na de hoje, que coincide com a morte do ídolo, em 20 de janeiro de 1983, haverá uma inversão no ritual. Junto com os sinos, é Malvino que será tocado pelo ecoar das lembranças:
- A maior parte do povo já se esqueceu dele, mas aqui deixou muita saudade - conta, ao buscar o fôlego, prejudicado pela emoção e pelo tabagismo, para dizer como gostaria que a imagem do amigo fosse preservada. - O que eu queria mesmo é que ele estivesse aqui até hoje.
Apesar da destruição que causou não apenas nas defesas rivais, Garrincha preferia a comédia ao drama. Antes de se tornar vidraça, atacada pelo moralismo, era com sua atiradeira que fazia estragos em Pau Grande. Malvino lembra que Garrincha “ficava na vila com sua atiradeira, tacando pedra na escola”. À mesa, distraía o amigo para roubar-lhe o bife. Fã dos filmes de Cantinflas, aonde quer que esteja Garrincha ainda deve dar risadas diante das ironias do destino que escreve certo por pernas tortas.
Na última semana, antecipando-se à romaria que viria ao cemitério de Raiz da Serra, o poder público mandou capinar a ala onde está o mausoléu, em que o nome do antigo prefeito de Magé está gravado duas vezes. Quando todos estiverem prestando reverências, Garrincha estará longe dali. Acondicionados numa urna, seus restos mortais dormem enterrados noutro jazigo, como informou um funcionário do cemitério.
- Eu que abri o caixão dele faz uns três anos. É duro trabalhar aqui, porque tem muita tristeza e bactéria. Só tomando cachaça depois.
Capaz de driblar até quem visita o cemitério, Garrincha fica mais à vontade na praça principal, onde seu busto é cercado por boemia e som alto. Em solenidades, vira palanque para promessas que só aumentam a expectativa e a frustração de seus herdeiros. Morador da casa de quatro cômodos em que o tio foi criado, no caminho da cachoeira, Bermar vive numa encruzilhada diante da curiosidade dos visitantes. Sempre que se dispôs a falar, sentiu-se vítima do mesmo processo em Garrincha padeceu. Ao exigir compensações para abrir as portas e permitir fotos, é ele quem reproduz a exploração da imagem do tio, além de contribuir para seu esquecimento.
- O que eu vou ganhar em troca? Ninguém faz nada, a família é desunida.
Entre Pau Grande e o distrito vizinho de Fragoso, residem boa parte da família e do problema. Ao contrário da expectativa de fazer da região um destino turístico capaz de sustentar a todos, a realidade revela o esvaziamento das possibilidades.
- Ninguém tem plano de saúde. Já falei que se acontecer alguma coisa comigo quero ir para a UPA de Petrópolis. Não me levem para Saracuruna! - diz uma das filhas, que pede para não ser identificada, embora o drama seja conhecido. - Não tem ninguém bem. Eu bebia, agora estou libertada. Minha TV está queimada. Faz tempo que não sei o que é entrar numa loja e comprar roupa.
Sentada na amurada da casa onde viu o avô pela última vez, quando Garrincha foi votar em 1982, a neta Alessandra troca as dores pela esperança nas novas gerações. Dona de uma lanchonete, fala dos planos de transformá-la num bar temático, enquanto exibe o currículo de seus filhos em meio à sinfonia dos pássaros que anunciava o fim das chuvas na manhã da última quarta-feira. Canário, coleiro, sabiá, trinca-ferro, pichanchão e até tucano. Antes de ser visto como um criminoso ecológico, Garrincha era um admirável caçador.
- Nunca vi camarada tão sortudo. Era bom na espingarda, aquela de socar a pólvora com chumbo - diz Malvino, antes de revelar outras habilidades do amigo. - A gente ia pescar com bomba de estopim amarrada numa pedra. Tinha que entrar na água para o peixe vir. Na explosão, subia tudo: cará, mandi. Depois de frito, a gente ia para o coreto da igreja destrinchar tudo com cachaça.
No campo dos sonhos
De caçador a caça, Garrincha tinha que ser tirado da mata para entrar em campo nos jogos do Pau Grande, um clube alvinegro e centenário como o Botafogo. Mesmo reduzido pela construção de muros, o campo atual, com 113m de comprimento por 80m de largura, ainda é maior que o da maioria dos estádios brasileiros. Cercado por montanhas baixas que pintam de verde um contorno semelhante ao das arquibancadas do Maracanã, o gramado tem a dimensão da natureza livre e exuberante de Garrincha.
- Ele falava para a turma: o que eu faço aqui eu faço lá no Maracanã, é a mesma coisa - lembra Malvino, que entrava no estádio no meio dos jogadores do Botafogo, ouvia a preleção de João Saldanha e ainda se admira com a frieza e a generosidade do craque em qualquer circunstância. - A gente nunca pediu nada para ele. Lembro que uma vez ele me deu um chapéu e um par de sapatos. Quando ia para fora, trazia isqueiro, essas besteiras. Ele não tremia, não tinha medo de nada. Podia ter medo só de onça, que tinha muita nessa mata quando a gente era criança. A gente via os caçadores passando com o bicho nas costas.
Maior predador daquela floresta, o craque com nome de ave acabou vítima de si mesmo. Depois da via-crúcis por clínicas no Rio, voltou para descansar em paz na terra que deu origem à lenda. Ao entrar no mato guiado por uma estrela solitária, o pequeno pássaro marrom se transforma numa divindade capaz de seduzir multidões antes de abandoná-las. Quem viu o fauno das pernas tortas jura que Garrincha foi muito mais que isso. Trinta anos depois, ainda não houve esquema ou teoria capaz de contê-lo.

fonte : o globo

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