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domingo, 9 de outubro de 2011

Cultura e pobreza


Não se pensa de barriga vazia.

Não se formulam idéias e práticas, quando não há comida em casa, quando se vive sem saneamento básico, quando a sua saúde escorre pelo ralo.

Assim não se pode ser instruído enquanto se sobrevive, se vegeta e se carrega a imensa responsabilidade de educar.

Tanto um quanto o outro necessitam de alimento. O educando e o educador. Alimento, no mais amplo sentido da palavra, alimento de feijão com arroz, mas também acalento e tranqüilidade. Aquela dorzinha de dente que tem de ser tratada, aquela dorzinha febril da quase miséria derivada. Educar não se restringe a lecionar conteúdos, mas também a servir-se de instrumentos para atravessar continentes.

Morar, comer, sentir-se seguro, respirar perfume no lugar de odores decorrentes do esgoto a céu aberto, aliviar a dor no lugar de sobrecarregar-se e humilhar-se em filas, cuidar e ser cuidado no lugar de enxotado pelo desemprego. Tudo isso, e muito mais, formam um único pacote que a educação procura equacionar, mas que não pode ainda fazer milagres.

A pobreza destrói o cidadão mais rápido do que se pode conjugar o verbo viver.

E onde fica a cultura nisso tudo?

Existe pobreza na cultura e cultura na pobreza. É verdade. Cultura pobre é aquela que não se dá ao respeito, não dignifica os seres em si mesmos. Viaja, promíscua, entre paraísos fiscais onde é melhor acolhida, como produto simplório e superficial que é, do que nos paraísos reais, onde tem que aprender a partilhar.

Há muito já tratava Marx da mais valia. Não se recompensa o trabalho mas apenas se protege a integridade física do trabalhador. Não que esta preocupe os donos dos meios de produção, apenas se almeja que o trabalhador retorne no dia seguinte à lida. O trabalho é ,portanto, bem menor e insignificante, para aqueles que se servem da cultura pobre.

Hoje ainda cobram as elites, do estado, mais segurança do que o combate à fome, sob todas as suas perspectivas, desde a desnutrição física até a fome moral.

É bem verdade que resistem bravamente os cidadãos empregados pois sabem e convivem com a miséria do desemprego a um palmo e , não raro, sob o mesmo teto.

A cultura pobre evidencia apenas uma prática já tão reiterada que defini-la tornou-se desnecessário. Seus produtos encontram-se em tudo que respira cultura. Basta olhar ao redor nos semáforos, embaixo das poucas árvores que nos sobraram e imersos nos olhos quietos sob os viadutos. São concertos de uma orquestra que toca há séculos e que jamais mudou o tom.

A cultura dos pobres, ou seja, resultante deste outro lado, o percentual numérico maior e menos favorecido pela cultura pobre, é construída a partir da procura interminável e do desamparo silencioso.

A cultura proveniente da pobreza é, paradoxalmente, uma cultura mais rica. Intrinsecamente a cultura advinda do “esquecimento social” é cultura de ricos. Há riqueza, não nas suas engenhosidades lucrativas e astúcia monetária, mas no aprendizado. Transmite-se e se difunde costumes, com criatividade, sem a intervenção de veículos de mídia, mas através do mais importante dos mediadores: a solidariedade.

Por meio de tradições que nos enriquecem, almejamos e promovemos o enriquecimento dos demais. Aqueles que estão à nossa volta não são meros pares de braços e pernas, são construções sócio-culturais como nós. Uma vez necessitados, é mister ajudá-los.

Pensando desta forma , expandimos nossa riqueza cultural além dos limites de uma cultura pobre que tende a impor barreiras e óbices.

Observando , entretanto, a cultura proveniente da pobreza, chegamos à conclusão que esta encontra-se cerceada pelas imposições dos laços anacrônicos de dominação. Há, em verdade, uma cooptação, induzida pela cultura pobre, de individualidades e construções culturais para o mundinho seleto das facilidades. A cultura pobre, por meio de mecanismos apelativos, intimidativos e monopolizadores, freia a própria consolidação de uma cultura estruturada a partir de um olhar mais próximo do real.

Desta forma, quando temos, ilustrativamente, manifestações populares como blocos e folguedos que ameaçam ganhar espaço pela sua própria sinergia com as massas, são imediatamente encampadas pelas elites. A defesa da cultura pobre é tornar-se mecenas de uma cultura desfavorecida antes que ela tome corpo e ande com as próprias pernas.

É importante desvincularmos a cultura pobre da cultura que tem sua gênese na ausência de recursos e meios. Esta última possui força, engajamento e participação na realidade. Não se alimenta do esforço alheio nem se locupleta da ausência de escrúpulos. É cultura que se impõe pela necessidade, mas também pela qualidade. É cultura que distribui no lugar de acumular.

A miséria primeiro se instaura nos corpos abatidos pelo cansaço, pelo descaso e pelo sofrimento, porém, apenas se permitirmos ela alcançará o nosso espírito. E o espírito de um povo são os seus vínculos culturais. Os sinais de vida que a cultura pobre se presta a mortificar.

A cultura dos pobres é anônima. A cultura pobre é anêmica.
Marcos André Carvalho Lins

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