Por RUY CASTRO
Numa época que, aos cantores populares, tudo é permitido - desde incendiar
guitarras e plantar bananeiras no palco, até urinar na platéia e destruir
andares inteiros de hotéis -, a apenas um deles nada é permitido. Chama-se
João Gilberto. Ele não pode pedir à platéia que o ouça em silêncio e com
educação, não pode exigir que os microfones estejam afinados com a
delicadeza de sua arte e não pode gravar um disco maravilhoso como João, Voz
e Violão. Se cometer qualquer um desses atos condenáveis, precisa ser
vaiado, execrado e diminuído. E é preciso fazer isto porque a música
brasileira contemporânea, rica em bundas, padres e sertanejos, pode dar-se
ao luxo de dispensar João Gilberto.
De seu novo disco, João, Voz e Violão, foi dito que nada acrescenta ao que
ele já fez, que não tem novidades e que foi uma perda de tempo gravá-lo.
Para que regravar Chega de Saudade e Desafinado, exatamente (sic) como nos
discos originais? - perguntou-se. Pois, pergunto eu? Por que não? Frank
Sinatra, a cada vez que mudava de gravadora, regravava todo o seu repertório
(quantas versões não fez de Night and Day e The Lady Is a Tramp?). Mas
Sinatra podia fazer isso - João Gilberto não pode. Os descontentes
esquecem-se de que uma grande faixa do público mais jovem nunca ouviu suas
gravações originais de Chega de Saudade e Desafinado - estão fora de
circulação há dez anos, desde que uma querela judicial entre ele e a
gravadora EMI tirou do mercado o CD contendo os seus três primeiros LPs,
gravados há décadas.
Mas não importa: João Gilberto é o único cantor do mundo que não tem direito
de regravar seus antigos sucessos. E, se se atrever a fazer isso em 1999,
precisa contrariar todas as leis naturais e fazê-lo com a mesma voz que
tinha em 1959. Será que já esquecemos os antecedentes históricos? Bing
Crosby, Judy Garland, Fred Astaire, Chet Baker, Mabel Mercer e tantos
outros, todos aproveitaram a maturidade para voltar a seus antigos
repertórios e regravá-los com uma voz (ou o que restava dela) mais grave,
mais sábia, mais experiente. Essas interpretações tardias não podiam, nem
deviam ser comparadas às originais - eram outra coisa, uma outra visão. Se
João Gilberto produz, hoje, versões tão parecidas com as que gravou há 40
anos (40 anos!) e ainda é capaz de emocionar, devíamos maravilhar-nos com a
perenidade de seu equipamento vocal - e a de canções como Chega de Saudade e
Desafinado.
Naqueles idos, ao gravar pela primeira vez esses sambas de Tom Jobim com
Vinícius de Morais e Newton Mendonça, João Gilberto deu uma identidade a
toda uma geração, emprestou-lhe uma voz, seduziu-a para a música, para a
beleza e para a criação (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e
outros não se cansam de dizer que se tornaram compositores por causa dele).
Sua batida de violão alterou 60 anos de música popular brasileira e foi
assimilada por todas as músicas populares do mundo - inclusive a americana,
que já a tomou tranqüilamente para si. Mas, ao autor dessa tremenda
revolução, critica-se que nunca mais fez nada "diferente", como ele fosse
obrigado a fazer uma revolução a cada disco.
Mais uma vez, deveríamos recorrer à História: Louis Armstrong nos anos 20,
Duke Ellington nos anos 30, Charlie Parker nos anos 40, cada qual fez sua
revolução particular no jazz de sua época, consolidou seu estilo e nenhum
deles foi crucificado por nunca mais ter feito nada "diferente". Mas, no
Brasil, você sabe, somos muito exigentes. Não se perdoa a João Gilberto a
insistência em continuar fiel a si mesmo, em voltar a seus velhos clássicos
e em ir buscar ouro no passado, na forma dos sambas de Bororó (Da Cor do
Pecado), Herivelto Martins (Segredo) e Antônio Almeida (Não Vou pra Casa),
como fez em seu disco novo. É culpado também por até hoje subir ao palco
usando terno, gravata e sapatos, e não camisola, pareô ou baby-doll.
Entre as acusações de "mesmice" em João, Voz e Violão, estava a de que era
"mais um disco de João Gilberto ao banquinho". Mas de onde as pessoas
tiraram essa idéia? Este é o seu primeiro disco de estúdio neste formato, ou
seja, só ele e seu instrumento, sem orquestra. E, considerando-se algumas
orquestras que ele já teve de encarar, é de se perguntar se esse formato
enxuto não teria sido suficiente na maioria dos seus discos. Criticou-se
também o fato de que, tendo levado mais de um ano em preparação, João
Gilberto acabou gravando as dez faixas em apenas dois dias, algumas delas de
primeira. Mas, se foi assim, seria o caso de gritar aleluia: quantos outros
artistas brasileiros nos dias de hoje são capazes de gravar de primeira, sem
os infernais play-blacks e mutretas eletrônicas que transformam qualquer um
em "cantor"?
A possível pressa com que o disco acabou saindo dá-lhe um toque de verdade,
inédito até para os padrões de João Gilberto: pela primeira vez, ouvimos sua
voz falhar em instantes, hesitar por uma fração de segundo ou revelar um
excesso de sentimento que, com outros takes, talvez fosse corrigido. Confira
em Eu Vim da Bahia, no bolero Eclipse, em Coração Vagabundo.
Neste disco, temos um João Gilberto finalmente "humano", falível, sem a, às
vezes, irritante perfeição dos discos anteriores. Mais do que nunca, é como
se a voz que sai do CD-player estivesse ao vivo ao seu lado, na sala.
A capa do disco mostra o rosto da bela Camila Pitanga fazendo psiu para uma
platéia imaginária. Pode ser um recado aos jecas novos-ricos que, no ano
passado, o vaiaram no Credicard Hall e a quem ele, num gesto delicioso,
quase de criança, mostrou a língua - outros artistas, menos finos, teriam
quebrado o violão e o atirado na platéia ou dado bananas. Talvez fosse isso
o que aquele distinto público, mais habituado a rodeios ou a shows de rock,
esperasse dele. Mas João Gilberto tem o direito de pedir silêncio ao cantar
- qualquer cantor tem. Quem não quiser ouvi-lo, está autorizado a ficar em
casa.
Sim, João, Voz e Violão contêm apenas 30 minutos de música. Seus antigos LPs
também. E nenhum deles precisou de um segundo a mais para ser definitivo
adorei!
ResponderExcluir